A época que se segue após as grandes correntes clássicas da filosofia (platonismo, por um lado, e aristotelismo, por outro) vem gerar grandes tumultos para o desenvolvimento do pensamento pré-medieval. Entre todas as correntes de pensamento nessa época destacam-se, nomeadamente, o neo-platonismo, que tentará resolver a problemática do dualismo corpo/alma, que permanece uma questão insolúvel após o fim do pensamento clássico grego.
O que há de comum na corrente neo-platónica é, sem dúvida, o predomínio das ideias de Platão, que colocam inúmeros problemas de implicação metafísica, religiosa e mesmo física. Os neo-platónicos irão ocupar-se, sobretudo, na perspectiva de como a alma chega até ao mundo das Ideias ou das Formas, partindo do pressuposto que estas é que nos concedem o verdadeiro conhecimento e a perfeição da alma. Se o mundo inteligível é precisamente o caminho que conduz ao último grau de conhecimento e a essa perfeição das almas, como se chega até lá? Como se pode, desta forma, "salvar" a alma, com tudo aquilo que há no mundo terreno e sensível? Como se dá a síntese? O período neo-platonista é, sem dúvida, a passagem da filosofia clássica de Platão para uma filosofia apegada aos valores religiosos, logo, um "pré-cristianismo", se é que se pode dizer assim.
Contudo, este período não é pacífico, pois existem, entre outras, inúmeras correntes seguidoras de Platão. Essas correntes fundaram escolas. Entre elas, destacam-se:
Escola de Alexandria (Amónio, Plotino e Porfírio);
Escola Siríaca, na Síria (Jâmblico);
Escola Ateniense (Proclo e Simplício);
E ainda, menos relevantes:
Escola de Pérgamo (Juliano Apostata);
Escola de Alexandria (2ªvaga, com Sinésio e Asclépio como os nomes mais sonantes);
De entre as primeiras escolas neo-platónicas, destaca-se, sem dúvida, a escola de Alexandria, que se debruça sobre um conjunto de preocupações metafísicas e éticas, já acima descritas. Plotino irá ser o seu maior representante, que se tornará igualmente o mais conhecido. Depois dele está Porfírio, seu discípulo, que terá ficado mais conhecido por transcrever e compilar toda a obra de Plotino do que por ter publicado igualmente livros seus, nos quais se afasta claramente do pensamento do seu mestre. Interessa-nos, então, falar de Porfírio, pois terá sido ele o responsável por uma obra que preconiza, talvez, pela primeira vez, de uma forma explícita, a adopção da abstinência de carne como um dos deveres fundamentais do filósofo. Isto vem na linha de continuidade do pensamento platónico sobre como um filósofo se deve sentir em forma, quer ao nível do espírito, quer do corpo, ideia que os neo-platónicos (inclusivé Plotino) não irão refutar.
Porfírio nasceu em Tiro, por volta de 232 d.C. e morreu em 304 d.C., na cidade de Roma. Tornou-se discípulo de Plotino, a partir de 262 d.C. Após a morte deste Porfírio regressou a Roma, onde compilou as várias obras do seu mestre, mas escreveu também as suas, das quais a que mais se destacou foi, sem dúvida, a polémica obra Contra os Cristãos, cujo título não escapou às malhas da censura da época, imposta pelo Imperador Justiniano, que proibiu a expressão de tudo o que fosse contra o cristianismo, que entretanto já se havia implantado com grande amplitude.
Este seguidor de Plotino inscreve-se, geralmente, na escola de Alexandria, embora se tenha aproximado e conotado com as teorias de Jâmblico, seu discípulo, que terá fundado a corrente siríaca do neoplatonismo. Esta regredia, contrariamente aos ideais cristãos vividos em Roma, às formas anteriores de paganismo, com multiplicidade de deuses anímicos (gr. daemons). Porfírio mantém-se, mesmo assim, à margem desse pensamento, pois irá tentar estabelecer pontes entre a religião, a metafísica e a mística (astrologia).
Mas, concretamente, de que forma a abstinência é encarada pela filosofia em Porfírio? Em Porfírio, existem três graus de virtudes. São eles: as virtudes políticas, que se manifestam nas relações humanas; as virtudes purificadoras, que são responsáveis pela libertação da alma face ao apego do sensível e das coisas terrenas; e as virtudes que permitem o relacionamento da alma com o intelecto, mas que não se confundem com ele; em último lugar, estão as virtudes do próprio intelecto!
Assim, cabe ao homem decidir o que quer fazer, colocando na esfera do Intelecto humano a virtude suprema, por oposição à virtude do Uno de Plotino (=Deus). Isto conduz Porfírio a um ataque claro à fé cristã num só Deus e Senhor, chegando a admitir um paganismo sem precedentes na actual era. Porém, ao invés de Jâmblico, que admite uma realidade suprema ainda mais poderosa do que o Uno de Plotino, razão pela qual é necessário evocar as ajudas por parte dos deuses, Porfírio pensa que a mediatização entre o intelecto e o Uno deve ser, de igual forma, intelectual e, por isso, da ordem discursiva. O que permite esta mediatização é a astrologia, que se refere ao intermédio das estrelas e planetas na esfera do destino da alma humana. No entanto, uma vez mais, cabe ao intelecto o trabalho de interpretar e encontrar a chave dessas influências. Isto é, numa primeira análise dá-se o retorno ao misticismo grego, mas sobretudo dá-se o acentuar da própria salvação da Alma pelo seu intelecto. Ou seja: se se admitir que a alma é múltipla, ou não independente do corpo, como queria fazer crer a filosofia de Platão, então cabe à nossa alma escolher o caminho mais intelectual para o fazer. E só desse modo poderá alcançar a salvação, não estando livre, porém, da influência externa dos outros aspectos mais contaminadores da alma. Porfírio afirma, pois, ao contrário de Plotino, que o mal não está na matéria - está no interior da própria alma, estando o homem sujeito a inúmeras tentações. Segundo Jâmblico, a alma é, igualmente, cercada de um mundo habitado por daemons, que seriam deuses inferiores ao próprio intelecto, mas superiores às almas comuns. Porfírio não contraria esta ideia, contudo, o maior desafio é seguir a via do Intelecto.
A necessidade de abstinência de carne segue assim duas justificações possíveis:
1º) Sendo sensível o mundo no qual a alma humana habita, e com o qual ela se relaciona, os animais têm que ser preservados devido à existência de almas inferiores. Com efeito, uma vez que a teoria da metempsicose continua a fazer sentido para estes filósofos, quanto mais baixa for a hierarquia dos seres nos quais a alma habita, mais fraquezas ela terá - terá que lutar mais pelo aperfeiçoamento.
2º) Uma vez que os perigos estão em todo o lado e a carne é um alimento tentador, devido ao sabor suculento que transmite ao paladar, então o homem que segue a via do intelecto deverá renunciar a este bem terreno, pois, caso contrário, a sua alma está manifestamente contaminada.
De igual modo, os animais também não deverão ser atacados, a não ser que seja em legítima defesa, pois Porfírio acredita que os animais têm alma e memória como os humanos, ainda que a um nível inferior.
O bem assenta pois na perfectibilidade das virtudes e o caminho para Deus é o Intelecto. Sem este, tudo estará perdido. A via do Intelecto é, pois, a Via Universal para a salvação. Comer carne é, assim, a contribuição, segundo Porfírio, para a alma menos perfeita, logo, mais má, porque longe do caminho universal do bem.
Citações:
"Encontrem-me alguém que esteja ansioso por viver, tanto quanto possível, de acordo com o intelecto e que não se deixe desviar pelas paixões que afectam o corpo e deixem-no demonstrar que comer carne é mais fácil do que a pessoa se alimentar de frutas e vegetais. (...) Isso, comparado com os vegetais, é intrinsecamente mais saboroso e menos leve para a digestão, ao passo que os últimos constituem um desejo menos tentador e conduzem menos à obesidade e à robustez do que a comida à base de animais mortos." Porfírio, On Abstinence from Killing Animals. Trans. Gillian Clark. London, Duckworth, 2000, 1.46.2
"Quanto a ingerir o mel produzido pelas abelhas, dado que ele se forma igualmente devido aos nossos esforços, parece-me ser apropriado que partilhemos o lucro: as abelhas colhem o mel das plantas, mas nós olhamos pelas abelhas. Por isso, devemos partilhar de forma a que elas não sofram qualquer dano e, dado que elas não o utilizam e nós utilizamos, essa é, de certa forma, a nossa recompensa." idem, ibidem, 2.13.12